Opinião

O milicianismo ocupou a República

Com Bolsonaro, a ética miliciana chegou ao poder e contaminou a vida pública do país

Guilherme Freling
6 min readJun 28, 2021
Sem máscara, General Pazuello participa de ato político no Rio de Janeiro, o que é proibido pelo Código Militar | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

Na sessão da CPI da Covid do dia 12 de maio, em que estava sendo interrogado o ex-secretário de Comunicação da Presidência Fabio Wajngarten, o filho 01 do Presidente da República, Flávio Bolsonaro, referiu-se ao relator da comissão, o senador Renan Calheiros (MDB-AL) como “vagabundo”. Na confusão sobre se Wajngarten deveria ou não ser preso por estar mentindo na CPI, ele disse:

“Imagina a situação: um cidadão honesto ser preso por um vagabundo como Renan Calheiros.”

Pode parecer só mais uma demonstração do baixo apreço que tem a família pelo decoro, mas, na verdade, o termo esconde uma gama de significados muito própria da sua gente. Ao blog do jornalista Octávio Guedes, o deputado Marcelo Freixo (PSB-RJ) explicou:

“É um termo bem miliciano. Porque miliciano é bandido, mas ele acha que bandido é só outro. Se você pegar as escutas policiais sobre as milícias, você ouve muita reclamação assim. (Freixo imita a voz de um miliciano que caiu num grampo) “Pô, não enfrenta o vagabundo e vem enfrentar a milícia. A gente tá colocando em ordem.”

E acrescentou:

“O Flávio se comportou dentro dessa lógica: os crimes dos quais é acusado não são crime. Vagabundo é outro.”

Freixo é conhecedor dessa realidade. Em 2008, presidiu a CPI das Milícias na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro que indiciou 225 políticos, policiais, agentes penitenciários, bombeiros e civis ligados aos grupos paramilitares.

A oposição entre vagabundo e cidadão honesto é chave para compreender o bolsonarismo. Ela não se restringe, no entanto, ao contexto do crime organizado. A todo momento, em qualquer discurso, Bolsonaro e sua turba fazem questão de contrapor nós (cidadãos honestos, cidadãos de bem, família tradicional, patriotas, cristãos etc.) a eles. No grupo do eles, entra qualquer coisa que não esteja conosco: comunistas, maricas, a Globo, a mídia, cientistas, acadêmicos, policiais que prendam milicianos, juízes. Enfim, qualquer um. No fim, são todos vagabundos comunistas.

No livro A república das milícias: dos esquadrões da morte à era Bolsonaro, Bruno Paes Manso reconstrói o nascimento dessa ética miliciana que não reconhece em si um problema. Policial que identifica um criminoso endinheirado para extorqui-lo (na gíria: que faz garimpagem), ou policial que toma uma comunidade como refém e cobra dinheiro dos moradores em nome da proteção, ou policial que explora moradores construindo imóveis irregulares, não são um problema. Eles, na verdade estão protegendo essa população dos vagabundos.

No livro, o jornalista e pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da USP, conta a origem das milícias desde os grupos de extermínio, surgidos nos anos 60 durante a ditadura, até a atual situação de disputa pelo controle de regiões (onde o Estado de direito e a justiça são apenas uma utopia distante) com grupos organizados como Comando Vermelho, Terceiro Comando Puro e Amigos dos Amigos.

(Na literatura, ninguém retratou melhor do que Rubem Fonseca o nascimento do submundo do crime carioca, em que a polícia é só mais um ator da violência, mas com treinamento e recursos estatais.)

Como se a lei não valesse para ele, Bolsonaro anda de moto sem capacete | Foto: Anderson Riedel/PR

Como pode o miliciano — e aqueles que justificam suas práticas — sustentar uma narrativa de que não são criminosos, mesmo roubando, traficando, extorquindo e assassinando? Mesmo sendo corruptos?

Para entender isso, o livro do professor João Cezar de Castro Rocha, Guerra cultural e retórica do ódio: crônicas de um Brasil pós-político, é inescapável. O professor identifica na Doutrina de Segurança Nacional, no auge da Guerra Fria, a semente para a mentalidade com que opera, hoje, o bolsonarismo e os grupos paramilitares do Rio de Janeiro. Para combater os comunistas — as guerrilhas de esquerda ou qualquer um que se levantasse contra a ditadura — aos patriotas tudo era permitido.

O limite legal a que estava submetido o guarda da esquina — na metáfora de Pedro Aleixo quando da assinatura do Ato Institucional Nº 5 — era frouxo como a vontade de punir torturadores, desde que estivessem combatendo os impatrióticos comunistas. Tudo valia.

Um personagem desse contexto é ninguém menos que Carlos Alberto Brilhante Ustra. Chefe de operações DOI-CODI entre os anos de 1970 e 1974, ele comandava a repressão à oposição e hoje, espera-se, está sentado no colo do capeta. Ustra foi o primeiro oficial condenado na Justiça brasileira em uma ação declaratória por sequestro e tortura durante o regime militar (1964–1985).

Em 2016, durante a votação que resultou no Impeachment da ex-presidente Dilma Rousseff, um deputado e capitão reformado do exército, que agora ocupa a presidência da República, fez questão de reverenciá-lo.

“Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff, pelo exército de Caxias, pelas Forças Armadas, pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de tudo, o meu voto é sim.”

O Deputado Federal Jair Bolsonaro homenageia o torturador Carlos Alberto Brilhante Ustra durante o impeachmente de Dilma Roussef | Imagem: Reprodução/Globo

Foi nesse conjuntura de debilidade democrática e legal que nasceram as milícias. Nos porões da repressão, o que importava mesmo era fuzilar a petralhada. Opa! Era torturar os comunistas. (Talvez o engano se deva ao fato de que ambas as frases têm origem na mesma mentalidade).

A ligação da família real com os paramilitares é pública e notória.

Adriano da Nóbrega, ex-capitão da Polícia Militar, articulador do Escritório do Crime — maior grupo de matadores de aluguel do Rio — , e apontado pelo Ministério Público como chefe da milícia do Rio das Pedras — histórica base eleitoral de Bolsonaro, onde ambos têm residência — , foi homenageado pelo então deputado federal pelo PP, Jair Bolsonaro, em 2005. O deputado referiu-se a ele como “um brilhante oficial”, “coitado” e “um jovem de vinte e poucos anos” que estava sendo injustiçado.

Como registrou o jornal O Globo, o discurso aconteceu “quatro dias depois da condenação de Adriano a 19 anos e seis meses de prisão pela morte do guardador de carros Leandro dos Santos Silva, de 24 anos, na favela de Parada de Lucas, Zona Norte do Rio.”

Paes Manso registra em seu livro como Adriano da Nóbrega se aproximou de Fabrício Queiroz, que, segundo denúncia do Ministério Público do RJ, operava um esquema de rachadinha no gabinete do mesmo senador que chamou Calheiros de vagabundo, quando esse era deputado na Assembleia Legislativa do Rio:

“Queiroz e Adriano da Nóbrega se conheceram e 2003 no 18º Batalhão [da Polícia Militar do Rio de Janeiro]. Anos depois, em 2007, Queiroz se tornou o faz-tudo do gabinete do deputado Flávio Bolsonaro.”

Anos depois, a mãe e a esposa de Adriano foram nomeadas para trabalhar no gabinete do 01 na ALERJ.

Ou seja, a intricada relação da família presidencial com as milícias exige a compreensão de ambas as mentalidades. É ingenuidade querer travar um debate esclarecendo o que é comunismo, ou o que é Estado de Direito, ou se Calheiros é vagabundo mesmo. A verdade é secundária para eles. O que interessa é ganhar dinheiro e manter-se no poder enquanto cometem-se os crimes que quiser. A instituição que respeitam é a lei do mais forte.

Para os bolsonaristas, o “povo” (desde que bolsonarista) está acima da própria constituição | Foto: Fernando Frazão/Agência Brasil

O ponto aqui é que o milicianismo ocupa a presidência da República. E não só ela. O desprezo pela lei está na Procuradoria-Geral da República — que, na esperança de sua nomeação para o STF, tapa os olhos para o que fala o presidente. É a cola que os une ao Centrão — ou não estão os Heinzes na CPI achando que nunca pagarão por falar o que falam? E é o que tem conduzido o combate à pandemia pelo Governo Frederal: “aproximadamente 70% da população vai ser infectada. Não adianta querer correr disso”; “não sou coveiro.” É uma intimidade pornográfica com a morte.

Veja: embora sejam (ou defendam) criminosos, são criminosos do bem. É tudo em nome da pátria, de Deus e da família. Contra os vagabundos.

Aos Barros do Congresso interessa manter as coisas como estão. É a certeza da impunidade: Bolsonaro continua cometendo os crimes que quiser, enquanto o tratoraço inunda suas bases de dinheiro.

Liras só (se) tocarão quando o preço pela sustentação do milicianismo ficar caro demais.

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