Entrevista

Jornalismo e América Latina: uma entrevista com Sylvia Colombo

Jornalista e historiadora fala sobre sua trajetória no jornalismo, seu livro mais recente e política latino-americana

Guilherme Freling
20 min readAug 29, 2021
Sylvia Colombo | Foto: Arquivo Pessoal

Sylvia Colombo, 49, é uma âncora jornalística no mar revolto da América Latina. Formada em História pela USP e Jornalismo pela PUC-SP, Sylvia já trabalhou de Londres para o jornal Folha de São Paulo e hoje é a correspondente para América Latina.

Suas reportagens, entrevistas e análises são sempre muito respeitadas pela profundidade em contexto histórico e pela experiência que tem a jornalista em cobertura internacional.

Em abril, lançou o livro O Ano da Cólera, propondo uma reflexão sobre os movimentos sociais que incendiaram o continente. Na obra, a autora reporta os acontecimentos de cinco países — Chile, Bolívia, Venezuela, Argentina e Uruguai -, contextualizando historicamente como eles chegaram ao momento de cólera, sucedido pela pandemia.

Nesta entrevista, realizada por video-chamada em agosto, Sylvia conta sua história no jornalismo, reflete sobre o fazer jornalístico na visão de uma correspondente e diz o que espera para o futuro da América Latina.

Por que você escolheu cursar jornalismo e história e como foi o começo da sua carreira?

Na minha adolescência, sempre fui muito interessada em ler. E achava que a minha profissão tinha que ser por aí. Era o meu forte. E eu tinha muita vontade de estudar História, até porque eu sou filha de uma professora de história. Na minha casa, as primeiras leituras eram a estante da minha mãe. Aí quando chegou o momento do vestibular, eu prestei para História e para jornalismo. E eu passei nos dois.

No começo fiquei um pouco em dúvida, achei que dava pra levar uma um pouco mais devagar e a outra mais rápido — o que eu acabei fazendo. Fiz História na USP, por cinco anos, e jornalismo na PUC-SP, que eu fiz em quatro anos.

Depois eu fiz o trainee da Folha, em que eles colocam você dentro do jornal andando com os repórteres, e eu já me entusiasmei bastante com a adrenalina do jornalismo. Me identifiquei mais com aquilo: fechamento, sai correndo e tal.

Depois do trainee da Folha, tive a oportunidade de trabalhar na Ilustrada, onde eu trabalhei por vários anos, como redatora, como repórter, como editora assistente, na pauta, enfim.

Cultura é uma área que me fascina, gosto muito de cinema, de literatura. Só que aí sempre te dá aquelas inquietações, fazer algo diferente. Então primeiro posto no exterior foi em Londres.

Eu fui pra Londres como correspondente junior e fiquei por seis meses. Foi uma experiência maravilhosa, porque me abriu muito a cabeça. Eu era bem menina de classe média paulistana, italiana, uma coisa muito bairrista, fechada. Eu cheguei lá e estava estourando a Guerra do Kosovo.

A Guerra do Kosovo foi um conflito separatista, no que era antigamente a Iugoslávia.

Foram experiências muito interessantes de se ter quando eu tinha 25 anos. Fui pro Kosovo, fui pra Macedônia. Fiz matérias nos campos de refugiados. Foi já uma aula de vida real, correspondente internacional de guerra, mesmo. Era uma guerra, embora não tivesse bombardeios onde eu estava, era ali do lado, as pessoas estavam fugindo. Depois eu também cobri a prisão do [Alberto] Pinochet, cobri esportes, cobri um monte de coisas interessantes e voltei pro Brasil querendo voltar a fazer algo internacional. É um bichinho que entra na sua cabeça quando você sai pela primeira vez e você quer sair sempre.

Eu estive aqui [em Buenos Aires] entre 2010 e 2013, fui pros Estado Unidos, porque ganhei uma bolsa pra estudar lá, voltei pra São Paulo, mas já não estava querendo saber de São Paulo e pedi pra voltar pra Buenos Aires. Eu vim pra cá com a incumbência de cobrir a região. Em cinco anos morando aqui, eu nunca fiquei seis meses sem sair de Buenos Aires.

Na hora de fazer jornalismo, a sua formação em História é um instrumento? Você pensa em facilitar o trabalho de historiadores futuros na hora de escrever a matéria?

Eu acho que tem duas coisas, uma delas é que a formação em História, ela te ajuda a pensar — óbvio que qualquer um pode pensar, mas ela te dá recursos para um pensamento crítico sobre a realidade.

Eu, por exemplo, quando eu vou cobrir a eleição no Peru, obviamente leio tudo sobre os candidatos, sobre o país nesse momento, a questão econômica. Isso qualquer jornalista faz, porque é a obrigação. Mas eu, além disso, também me interesso pela história do Peru, pelas coisas que ocorreram no Peru e que levaram o país até essa situação. Mais que fazer citações histórias; que, de fato, não cabe muito na linguagem jornalística. Mas o modo como eu reflito, pra poder escrever, passa pela história.

Depois, está toda essa coisa que você pode usar como um requinte para sua cobertura — citar um livro, citar um pensador.

Eu tenho um blog na Folha também, só sobre questões latino-americanos, e nesse blog eu tenho um pouco mais de liberdade. No blog eu vou soltando coisas como “livros para ler, para entender a atual situação na Colômbia”, coisas que ajudem a pessoa a agregar contexto, se não você acaba com um pensamento como: “Ah, nessa América Latina, nada funciona”.

Eu gosto de soltar umas informações pra que a pessoa entenda um pouco mais e saia desse discurso mais raso, médio, do brasileiro sobre o resto da região.

No seu livro mais recente [O Ano da Cólera, Companhia das Letras, 256 páginas], isso que você estava falando sobre o contexto e singularidades de cada país está claramente definido. Mas como acompanhar o noticiário de tantos países ao mesmo tempo, com tanta coisa acontecendo?

Na verdade, precisa realmente gostar do assunto, porque é um interesse pessoal muito grande. Ontem, por exemplo, eu trabalhei na questão do voto de confiança que houve lá no Peru — houve uma eleição para referendar os ministros do Pedro Castillo. É uma coisa do dia, mas hoje eu já acordei querendo ver o que aconteceu, o que que o presidente falou.

É uma coisa que eu mesmo já vou trabalhando. Não preciso colocar “ler jornais do Peru, ler jornais da Colômbia”, isso está entre o meu interesse. Acaba sendo a novela da sua vida.

Eu leio a maioria dos principais jornais de todos os países. Mas eu leio mais intensamente aqueles que eu estou cobrindo na semana. Não é que eu precise ler 15 jornais todos os dias, não é assim, dou uma passada de olhos, mas sigo mais atentamente a prioridade da semana.

Presidente do Peru, Pedro Castillo, segurando um chapéu e um lápis, símbolos de sua campanha no pleito de 2021 | Foto: Getty Imagens

Na introdução do livro você fala sobre a formação de um correspondente internacional e o risco dele incorporar os vícios da imprensa local. Como é chegar em um país em que você não conhece o contexto, as nuances e começar a acompanhar para fazer pauta e reportar pro seu país de origem?

Existe uma parte dessa experiência que é positiva, que é chegar com uma ingenuidade, um estrangeiro mesmo, como um alienígena chegando em Buenos Aires, nessa confusão toda: peronistas, não peronistas, Boca, River. Você não sabe direito o contexto. Você tem um diferencial que é: eu vou dar o meu olhar de quem acabou de chegar aqui e está vendo essas pessoas que brigam por causa de política igual elas brigam por causa do futebol.

Então, essa ingenuidade de um recém-chegado dá um frescor para aquilo que você vai contar. Agora, é um detalhe. Você não pode ficar só nisso. Vai ser um longo processo — longo, mas que você tem que estar trabalhando enquanto isso — ler jornais, falar com pessoas, descobrir quem são jornalistas importantes e marcar café com todos eles, ver os telejornais todos. Tem que fazer uma imersão no país.

Perguntar para os jornalistas mais experientes quem são as pessoas importantes, com quem falar sobre economia — ter uma agendinha mínima sobre quem vai te explicar tal e tal situação. Isso é importante.

Agora, se você fica num país por muito tempo, fica uma coisa mais complicada, porque você vira um cidadão do país. Tudo acaba te influenciando muito. Uma coisa é você estar no Brasil e falar: “O dólar na Argentina desvalorizou muito; eles vão dar um calote de novo”. Outra coisa é quando esse calote te afeta.

Quando você vira demasiado um cidadão local, você acaba sentindo as dores que os argentinos sentem. É possível você ser correspondente nessa situação, mas você tem que se policiar muito.

Na sua essência, um correspondente é o olho do seu país fora. Se eu passar a ter um olhar argentino sobre as coisas, o meu relato vai perder força. Vai ser a mesma coisa que chamar um argentino pra escrever pra Folha.

Você não pode perder isso, porque se não você perde o posto mesmo. Ainda mais com essa crise financeira, os jornais estão mais propensos a começar a chamar freelas locais para fazer as matérias, e aí você perde essa qualidade do jornalismo feito por correspondente.

No caso específico do Brasil e da América Latina, qual é o olhar brasileiro para o continente? Você percebe se houve uma mudança nesse tempo que está fora? E como isso se reflete na escolha das pautas que serão publicadas?

O leitor brasileiro em geral — seja de direita, de esquerda — gosta muito de fazer comparações. Por exemplo, o Brasil está indo bem na vacinação? Está melhor que na Argentina, mas está pior que o Equador.

Essas comparações sempre são importantes e, quando você está num país, é bom mencioná-lo em relação ao Brasil — em termos de desenvolvimento econômico, desenvolvimento político. Em termos de cultura, já acho que você tem que falar sobre o autor, sobre o livro, sobre a obra separadamente, porque a cultura é universal.

Mas o que mudou, foi o seguinte. Nos anos de 2004, 2005 até 2015, que a gente teve na América Latina governos ditos de esquerda, mas com esse viés de fazer muitos repasses de gastos sociais para ajudar as pessoas.

Acho que nessa época, porque o governo Lula estava fazendo uma política muito expansionista e até demasiado ousada em relação à região — ele queria o Brasil em todos os fóruns e em todos os problemas. No próprio Haiti, que precisou de ajuda em 2010 por causa do terremoto, foi o Brasil que liderou a ação internacional.

Visita do presidente Lula à Missão das Nações Unidas para estabilização do Haiti, 2004 | Foto: Ricardo Stuckert/Agência Brasil

O Brasil teve uma atitude proativa em relações internacionais. Se foi bom ou se foi ruim é um longo debate pra ver todas as questões. Mas nesse momento o Brasil foi muito proativo e o interesse por todos esses países cresceu muito, porque eles passaram a ser parte da política brasileira. Falando em termos jornalísticos.

Enfim, os temas da América Latina começaram a ser muito latentes para o Brasil. Então, eu acho que nessa época, o interesse pela América Latina foi de 2 ou 3% para 80%. Uma coisa muito grande, mesmo. Depois a gente caiu um pouco.

Hoje eu acho que o Brasil, por conta da atual conjuntura do mundo, por causa da pandemia, que os países se ensimesmaram, estão em crise, e os países estão vivendo um pouco a ressaca daqueles tempos, esse intercâmbio já não é tão comum e eu não vejo o Brasil olhando mais pros seus parceiros com o mesmo olhar.

Isso vem do governo, obviamente. A gente tem um ministro da economia que não quer saber do Mercosul, basicamente. Já fez vários comentários diminuindo a importância do Mercosul. O Bolsonaro fala mal da Argentina. É toda uma coisa de se isolar mesmo. Mas eu acho que tem movimentos políticos que interessam o brasileiro — o que acontece no Peru, o que acontece na Venezuela, o que acontece em Cuba. Mas já não é aquela coisa num crescente.

Por que Venezuela e Cuba continuam a ser usadas para retórica de política interna? O próprio governador de São Paulo, João Doria, no último Roda Viva, falou que, com o Lula, o Brasil corria risco de virar uma Venezuela.

É uma retórica política eleitoreira, que não é só usada no Brasil. Os outros governos de direita que voltaram ao poder recentemente — Mauricio Macri, na Argentina, Sebastián Piñera, no Chile, Pedro Pablo Kuczynski, no Peru — todos usaram essa ameaça em suas campanhas.

Eu tenho, está no livro até, muita bronca com esse negócio de virar a Venezuela. Porque primeiro demonstra uma coisa preconceituosa com o país, não estão pensando no problema dos venezuelanos, que existem e são horríveis. A Venezuela é uma ditadura execrável, não tenho dúvida. Mas [com esse discurso] você está dizendo que a Venezuela é o lixo, do lixo. Eu acho que é preconceituoso com os venezuelanos, não se devia usar. Não é de bom tom.

Depois, mostra uma certa ignorância. O que quer dizer “virar uma Venezuela”? Vai virar um país de esquerda, distributivo ou autoritário, militar. Por que lado você acha que vai virar uma Venezuela? Se você pedir para que essa pessoa explique como a Venezuela virou uma Venezuela, como começou o chavismo, o que representou num primeiro momento, que melhorias para a população teve, como ficou tão autoritário, como virou uma ditadura, como que começou a faltar alimentos e as pessoas começaram a sair do país. Essa pessoa não vai saber dizer.

O Bolsonaro outro dia falou que na Venezuela já não tem mais nem gato e cachorro, porque as pessoas estariam comendo. Não só porque o Bolsonaro diz as sandices que ele diz, mas porque as pessoas começam a repetir isso. E é mentira que não tem gato e cachorro na Venezuela, tem bastante até. Enfim, não tem comida, tem os problemas de abastecimentos e tudo mais, mas não é preciso dizer isso.

Você pode dizer bolivarianização, mas o que você quer dizer com isso? Posso entender que você quer armar um conceito: um governo autoritário, populista, rodeado por militares. Tá bom, mas é uma coisa que foi inventada por esse pensamento um pouco ignorante. É mais fácil ver o inferno noutro lugar e dizer que isso aqui vai virar um inferno.

Minha grande bronca com essa expressão é que ela é errada. Demonstra que a pessoa não sabe nada nem sobre a Venezuela e talvez nada sobre o Brasil também.

Falando sobre fontes e entrevistas: você faz muitas entrevistas com muitas pessoas muito importantes como políticos, presidentes, artistas etc. Como você aborda essas fontes, mantém o contato e consegue as entrevistas?

Essa é uma atividade que dá muito trabalho, que você tem que começar um pouco como formiguinha. Eu tenho uma lista das pessoas com quem eu estou buscando entrevista e toda segunda-feira eu ligo de novo, mando mensagem. Seja presidente de algum país, seja empresário, eu vou ligando. Muitos acabam aceitando pela insistência. “Vou dar entrevista pra essa mulher, porque ela não para de encher o saco”.

Agora, outros você acaba chegando nas coberturas, nas suas viagens. Por exemplo, quando eu vou cobrir uma eleição na Bolívia e eu vou falar com o pessoal que está no entorno do Luis Arce, que está pra se eleger. Eu tento pegar o telefone de todas as pessoas com quem eu falo.

Luis Arce, presidente da Bolívia, em entrevista à Folha, 2019 | Reprodução/Twitter

O Luis Arce, especificamente, eu tinha o telefone dele na época que ele era ministro da economia do Evo Morales, o contato com ele era muito fácil. Quando você está nessas coberturas, qualquer telefone que te dão você anota, porque essa pessoa pode ficar importante logo. Aí na eleição eu pensei: “será que eu tenho o telefone dele?” e apareceu no meu telefone “Luis Arce”. No dia que ele foi eleito, mandei uma mensagem, eu estava em La Paz, ele respondeu: “Hola, Sylvia, não sei o que. Venha para a central de campanha amanhã que eu te dou uma entrevista.” Fui voando. Então tem uns assim que de tanto você acumular números, você consegue.

Hoje em dia, uma coisa que facilitou muito isso, embora ainda seja difícil, são esses grupos de jornalistas que há. Eu estou no grupo de jornalistas internacionais da América Latina, um grupo de jornalistas da Colômbia, tem uns daqui. Mas é um trabalho de formiguinha, todos os dias eu faço um repasse. E tem gente que não te dá [entrevista] nunca, e eu não paro nunca.

Um tema que passa por todo o seu livro é o racismo, direcionado, principalmente, a povos indígenas, o que é um pouco diferente do Brasil, onde o principal alvo são os negros. Como você tem visto a participação política dos povos originários aqui na região?

É uma questão super importante. Infelizmente no livro não dava pra fazer capítulos à parte sobre as questões, então essa do indigenismo entra mais no capítulo do Equador. O livro aborda a onda de protestos que eu cobri em 2019, e o Equador é o único em que as razões eram meramente indígenas.

E eu me impressionei muito. Foi uma surpresa pra mim. Eu já tinha ido a Quito várias vezes, sei que é um país com uma formação populacional com muitos indígenas. Mas eu não sabia de tanto ódio de classe, de tanto racismo, de tanto ressentimento. E isso estava muito marcado nos protestos, que foram muito violentos, bastantes reprimidos, com força pela polícia. E eu entendi que era um país que ainda não resolveu essa questão. Talvez como o Brasil não resolveu essa questão, a questão negra, com o passado africano e com o passado indígena.

Mas nesses países a questão indígena é mais numerosa que a questão dos negros. Então eu fiquei muito impressionada e quis estudar mais esse assunto.

Bolivianas seguram a wiphala, incluída entre os símbolos nacionais na Constituição de 2009 | Foto: Henry Romero/Reuters

No Equador, eles estavam mais longe da cidade. Eles apareceram na cidade e tocaram o terror ali. Os brancos estavam enlouquecidos de medo e gritavam coisas medonhas para os indígenas na rua, que botaram fogo nas coisas. Tudo dava medo. Os indígenas também sequestraram um grupo de jornalistas, que ficaram em um anfiteatro por horas e horas.

Na Bolívia, existe também esse mesmo sentimento de ódio de classes, ódio de etnias. Porém os indígenas estão mais integrados na cidade. Os bolivianos são indígenas. A minoria que é branca ou mestiça. Porém, com a tomada de poder pela Janine Añez, eles foram excluídos mesmo. Simbolicamente e depois pela força e depois com as políticas.

Também o ambiente foi violentíssimo. Os dias da saída do Evo, aqueles três dias que não tinha ninguém. Dava medo de sair. Os apoiadores estavam enlouquecidos, porque tinham mandado o Evo embora. Então eles desciam e colocavam fogo na casa dos opositores, saqueavam lojas. É preciso entender as razões deles, mas assusta ficar ali. Por outro lado, os anti-Evo estavam celebrando, só que ninguém sabia quem ia entrar. E aí entra o jogo político como sempre, que acaba decidindo por essa mulher super controvertida.

Foi curioso, porque eu estive lá nessa época e depois eu voltei para eleições. E nessa época, toda a burguesia, oligarquia, de La Paz estava feliz com ela, uma branca católica. Aí quando eu voltei, dez meses depois, pras eleições, nem eles aguentavam ela. Ela conseguiu ser uma unanimidade negativa. Ela conseguiu ir mal na economia, na política e depois veio a pandemia, que não é uma coisa que ajuda muito.

Eu acho que a gente precisa estar mais preparados quando vamos cobrir questões que são muito complexas etnicamente, por mais que você leia nos livros e tudo mais, falta muita cobertura desses países sobre as suas populações indígenas.

Nesses dias que eu fiquei no Equador, eu fui ler sobre essa questão, porque me falavam que havia cinco sindicatos indígenas e eles brigam entre si. Mas eu precisava entender isso. “Qual é a diferença dos indígenas da costa, dos Andes e dos arredores da cidade?” Então você começa a querer saber muito rápido sobre temas que são muito complexos.

Mas eu entendi coisas: A questão do bom-viver, essa filosofia indígena andina, que é totalmente diferente da indígena aqui do sul, da Argentina. Peguei um pouco da essência, acho que da próxima vez que for cobrir uma revolta indígena eu vou saber. No Chile tem a questão dos mapuches, araucanos, que é um pouco diferente da questão andina. Os andinos têm uma ideia, basicamente, de que é necessário que as constituições reflitam a cosmogonia deles — o modo como eles vêm o mundo. Como os indígenas vêm a sociedade, as leis. Primeiro vem a questão com a natureza, depois o resto.

Isso é o que eles chamam de bom viver, ou bem viver. Os mapuches têm isso, porém é bem ligado a algumas coisas da natureza, às quais eles são ligados. Os rios, as terras e por isso que tem essa questão contra a mineração, exploração de petróleo.

É interessante, porque eles entram numa assembleia constituinte com outras preocupações. Enquanto os brancos estão pensando em tempo de mandato, quanto que é uma bancada política, os indígenas vêm com as suas cosmogonias. É fascinante. Eu saio sempre humilde dessas coberturas, pensando que eu preciso estudar mais.

Falando sobre liberdade de imprensa no continente. Nesta semana o ex-presidente Lula, embora não tenha apresentado uma proposta, falou que queria regulamentação da mídia, mas que ele não queria o modelo cubano, ou o chinês, e sim o inglês. Quais são, afinal, os modelos cubano e inglês?

Se o Lula quer adotar o modelo inglês, seria uma maravilha, porque o modelo inglês é de liberdade de imprensa. Não tem uma agência regulatória da imprensa na Inglaterra, que sempre foi a ideia do PT. O que existe na Inglaterra é registrar os jornalistas — como não se faz no Brasil — mas de forma alguma isso significa controle, ao contrário, justamente para facilitar a distribuição de informações que interessam ao governo. Que eu saiba, não se tolhe liberdade de imprensa na Inglaterra.

Agora, a liberdade de imprensa em Cuba, na verdade, não existe. É muito fácil de classificar.

O que havia em Cuba, até o [Miguel] Díaz-Canel, é que artistas, escritores eles vinham tendo liberdade para falar e expressar opinião — obviamente desde que você não ficasse xingando os ditadores — porque os artistas, os intelectuais de Cuba são uma coisa boa da ilha, chamam turistas, chamam investidores. Os músicos cubanos viajam o mundo inteiro. Então eles tinham uma certa liberdade, e isso vinha sendo usado, nos últimos tempos, como uma coisa de resistência. Até que o Díaz-Canel, acho que em 2018 ou 2019, lançou um decreto dizendo que todo mundo que produzisse qualquer coisa, seja um livro, panfleto, uma newsletter, uma música, um sarau tinha que se registrar no buró central [órgão central do Partido Comunista Cubano].

As pessoas passaram a ser controladas, mesmo. O cara vai lá, toca a campainha, vê quem está lá, o que você está fazendo e tal. Qualquer coisa que for discurso dissidente é cadeia. Não existe liberdade de expressão, é muito simples de categorizar. Por isso mesmo que houve essa ida às ruas em 11 julho.

Cuba exportou um pouco desse modelo para a Venezuela. É um pouco mais difícil implementar esse modelo na Venezuela, porque ela não é uma ilha, tem mais acesso à internet, tem uma ajuda americana — não do governo, mas de venezuelanos que estão no exterior e trazem gadgets, dinheiro, internet, têm um IP em Miami, enfim. É mais difícil segurar os sites e blogs independentes.

Na Venezuela eu fui presa, mas me soltaram no mesmo dia. Eu estava fazendo fotos e falando com gente num lugar que era muito roubada eu estar fazendo aquilo. Na verdade, eu fui muito idiota.

Mais feio foi o que aconteceu com um amigo meu na Venezuela, porque lá a gente achava que estava numa área meio amigável, que era o Legislativo do [Juan] Guaidó. O Guaidó ia assumir mais um ano de líder da Assembleia. Aí veio a guarda bolivariana e começou a dar porrada nos jornalistas todos. Eu não levei, mas um amigo meu, espanhol, quase perdeu um olho. Aí todos os correspondentes levaram o cara para operar o olho em uma clínica em Caracas.

Como fazer a cobertura em países com informações limitadas? Há uma rede de jornalistas que se ajudam?

Sim, na Venezuela, principalmente nesses últimos anos, tem sido difícil, e existe uma rede de apoio. Nesses momentos em que não está acontecendo nada e que está cada um em seu país, a gente conversa, conversa com os venezuelanos. E quando ocorrem coisas como essas manifestações, todo mundo chequeia todo mundo. A gente faz isso com o jornal também - é um protocolo de correspondente internacional. Quando sai em viagem você combina com o seu editor de falar duas vezes por dia. Manhã e noite. Mesmo que não tenha nada pra falar.

Outra coisa é a solidariedade dos colegas, que é o que mais funciona, porque eles estão lá. O que o jornal pode fazer é acionar a embaixada, mas nesse caso do colega que caiu na rua com o olho sangrando, não adianta ligar pra Espanha, falar com os chefes. Você tem que levar o cara [para um hospital].

Como o Brasil tem sido visto na imprensa da região? O Bolsonaro brigou com Alberto Fernandez, apoiou a Keiko Fujimori [derrotada na eleição para a presidência do Peru], briga com o Nicolás Maduro, elogiou Pinochet no Chile.

Não é um bom momento aqui fora. Num primeiro momento do governo dele, havia nos outros países uma ideia de espanto e também de uma coisa meio exótica. “Como que os Brasileiros fizeram isso? Como eles elegeram um sujeito que fala essas coisas?”

Eu lembro que eu cobri, antes da pandemia, a visita do Bolsonaro a Santiago. Foi a primeira visita dele a um país latino-americano desde que foi eleito. Ele escolheu o Chile, porque ele gosta do Pinochet. Isso é uma coisa super incorreta de dizer no Chile, até para um governante de direita como Sebastián Piñera.

A visita dele foi em maio e em outubro os chilenos saíram às ruas para protestar contra tudo.

Eu lembro que nessa semana lá no Chile, os jornais vinham perguntar pra gente: “Bolsonaro, ele fala isso mesmo? Ele fala isso mesmo das mulheres? Ele gosta mesmo do Pinochet?” E a gente tinha que dizer que de fato ele prefere isso do que o kirchnerismo. Foi bastante espinhosa essa visita. Quando Bolsonaro foi embora, o Piñera chamou os jornalistas brasileiros para falar especificamente isso. Ele deu essa entrevista e fez questão de pontuar que ele, apesar de ser de direita — e na cabeça do Bolsonaro teria que estar alinhadíssimo com ele -, ele sabe que não pode ficar do lado de alguém que faz elogio à Ditadura e ao período militar.

Aqui na Argentina também se vê só essa parte dos impropérios que ele diz sobre as mulheres, sobre casamento gay, sobre a tortura, e que dói muito aqui. [A Argentina] também é um país que teve uma ditadura brutal. Na época da aprovação da lei do aborto, ano passado, foi uma questão bastante debatida também, porque o Bolsonaro fazia críticas do lado de lá.

Mas acho que existe uma certa parte da sociedade argentina que não acha tão loucura o que ele diz, que até se sente alinhada. Agora, nas eleições legislativas que a gente vai ter em novembro, existe um grupo, chama grupo dos libertários, que fala exatamente o que o Bolsonaro fala. Então eu acho que tem um pensamento alinhado. Mas, em geral, nos veem como uma coisa: “Que pena, né? Vocês estão lá com esse cara.”

Por fim, eu gostaria que você falasse sobre como foi escrever seu livro e que América Latina vai sair da pandemia.

O livro surgiu justamente no ano de 2019, que foi um dos anos mais vertiginosos que eu já cobri. Primeiro que eu não parei em casa, não parei de viajar. Em cada viagem eu ficava sabendo de uma explosão social num outro país ao mesmo tempo. Então eu saía de um e ia pra outro e ia pra outro. E eu achei que aquilo dava caldo para uma reflexão sobre as sociedades latino-americanas e seus estados.

O que a gente estava vendo, de maneira geral, era que os estados não estavam dando as respostas que as sociedades esperavam. No caso do Equador, a questão social, indígena e econômica. No caso do Chile a questão das pensões, da privatização do Estado. Eu achei que ali tinha uma ideia interessante, falei com a minha editora, ela gostou; só que eu falei: “não tenho dois segundos quando eu estou escrevendo para o jornal viajando”, então a gente deixou pra outro momento. Mas aí veio a pandemia e eu viajei menos, fiquei mais tempo aqui.

Sylva com seu livro, em Buenos Aires | Reprodução/Twitter

Aí eu pensei que podia encarar o evento agora, já com a perspectiva de tensões e manifestações na America Latina em 2019 e pandemia dando um susto em todo mundo, botando o pé na porta e deixando tudo em suspenso.

Não só em suspenso, a economia vai piorar, o trabalho vai piorar. Eu acho que de um modo geral, assim que as coisas começarem a voltar a algum normal, as pessoas tendem a voltar pras ruas. Porque as situações que elas viviam em 2019, e que não as agradavam, não melhoraram; pelo contrário, pioraram.

Elas descobriram, por exemplo, que não têm acesso à saúde digno, ou que cobre todo mundo, ou que seja pra todos. Não têm as aposentadorias. O trabalho informal, que foi muito duro para a América Latina durante a pandemia — porque as pessoas informais não têm direito a plano de saúde, não têm direito a estabilidade caso não tenham trabalho. As pessoas sofreram muito com a informalidade, estão na rua, estão desempregadas, então eu imagino que as revoltas voltem. Eu tendo a achar que nós vamos ver novos remelexos aí. Manifestações, protestos ou votos de rejeição. Votos de protesto, como foi o voto no Peru pelo Castillo. “Não aguentamos mais esse Estado neoliberal no modelo peruano.” Acho que há um retorno de mudança, sim, na América Latina.

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