Entrevista

“Hoje em dia a saída é estar jornalista e não ser jornalista”, afirma Lúcia Guimarães

Jornalista relembra sua carreira, fala sobre jornalismo contemporâneo, política, redes sociais e dá conselhos para quem está começando na profissão

Guilherme Freling
16 min readJun 7, 2021
Lúcia Guimarães | Imagem: Arquivo Pessoal

Lúcia Guimarães, 64, é um colosso do jornalismo. Carioca, formada pela UFRJ, iniciou sua carreira num daqueles tabloides que “se espremer sai sangue”. Foi contratada pela TV Globo e chegou a ser editora de Internacional do Jornal Hoje. Em 1985, foi pra Nova York e de lá não voltou mais. Hoje, é colunista semanal do jornal Folha de São Paulo e colabora com o canal My News.

Ninguém escapa de sua fala afiada, que não poupa adjetivos. Só ao presidente Jair Bolsonaro, nesta entrevista, cravou alguns como: renegado, marginal, estatista, corrupto, rachadinha e medíocre . Sua área preferida é jornalismo cultural, mas com Donald Trump no poder, pandemia e eleições, esse trabalho submergiu.

Pra falar sobre esses e outros assuntos, Lúcia concedeu esta entrevista, via Zoom, no dia 4 de junho.

Guilherme: Eu gostaria de começar perguntando um pouco mais de sua carreira, sua história.

Lúcia: Na verdade eu nem tinha planos de ser jornalista, eu queria ser música. Cheguei a fazer curso numa escola importante do Rio — que fechou, infelizmente — , cantava num coral, depois fui pro Instituto Villa-Lobos. Mas eu não tinha disciplina pra estudar teoria, nem pra praticar instrumento.

Eu estava no Colégio Zaccaria e tinha um dos melhores professores de português do Rio. Um dia ele pediu pra gente, quando a gente tinha 17 anos, pra escrever um editorial. Inclusive era no meio da ditadura. Eu escrevi o editorial — era um dever de casa — entreguei pra ele e fiquei doente. Ele era um cara tão sóbrio, que ele não queria me elogiar, que eu ficasse de cabeça cheia. Então ele, na minha ausência, comentou os editoriais e disse: ‘essa menina vai ser jornalista’. Naturalmente, todo mundo me contou quando eu voltei.

Naquela época era um estresse de vestibular infernal. Você tinha que fazer cursinho especializado, era uma coisa muito complicada. Aí eu fui fazer jornalismo, não tinha nenhuma outra inspiração, passei e fui fazer faculdade de jornalismo.

Pra se formar, você era obrigado a fazer três meses de estágio — estágio certificado, numa empresa mesmo e tinha que provar que você trabalhou. Aí eu trabalhei num jornal que era um tabloide super vagabundo, mas famoso. Aqueles que que se espremer sai sangue, cobria crime adoidado. Eu acho que era a única pessoa branca e jovem de classe média na redação, era uma redação divertidíssima. Mas acho que não certificaram, aí eu arrumei um estágio na Globo e era um estágio formal, acabaram me contratando e eu fui ficando.

Betty Lago, Maitê Proença, Lúcia Guimarães, Mônica Waldvogel e Márcia Tiburi, integrantes do programa Saia Justa | Imagem: Reprodução

Trabalhei em televisão direto, esses anos todos. Me puseram na reportagem local, cobria crime, revolta na penitenciária. Era aquela coisa do Rio de Janeiro. Eu detestava esse tipo de trabalho. Aí abriu uma vaga na Internacional e eu fui trabalhar no Jornal Nacional, como assistente da editora Margaret Cunha. Ela me ensinou tudo. Generosíssima. Era uma época muito tumultuada, depois começou a Guerra Irã-Iraque, tinha muita violência. Israel e palestinos. Era uma vida muito intensa. O fechamento era caótico: tudo chegava em cima da hora; não tinha computador; a gente fazia o script do Cid Moreira numas máquinas Olivetti e ia colando o script correndo. Foi um aprendizado de trabalhar sob pressão.

Tinha um grande editor-chefe na época, o Luís Edgar de Andrade, prêmio Esso de Jornalismo, um cara que havia sido correspondente no Vietnã. Também foi maravilhoso. E aí eu acabei indo ser editora de Internacional do Jornal Hoje e nesse período a Globo de Nova York resolveu, por uma questão de custo e operacional, que era mais fácil ter dois editores em Londres e dois editores em Nova York, porque os satélites chegavam nesses dois escritórios, e a Globo gastava menos tempo de satélite. O que ia de Londres e de Nova York para o Rio já era material praticamente editado.

Aí me ofereceram Londres, e eu não podia porque tinha uma criança pequena e era Londres que cobria as guerras e eu não tinha a menor condição com uma criança pequena de ficar viajando e cobrindo guerra. Eu recusei e eles me pediram pra cobrir Nova York enquanto contratavam mais alguém. Quando eu voltei, de novo me ofereceram Nova York e eu achei melhor aceitar porque eu já disse não antes.

Eu vim com a intenção de ficar um ano só, em 1985, aí eu fiquei como produtora do Paulo Francis, fazia produção, textos pro Jornal Nacional, pautas, essas coisas.

Nesse período em que você trabalhou com o Francis você escrevia também para o Estado, ou foi depois?

Eu fiquei 10 anos no Estadão. Acho que no meio dos anos 90 a gente começou com uma coluna dos quatro que era distribuída no Brasil, ancorada principalmente no Estadão e no Globo, chamada Manhattan Connections. Tinha o Nelsinho Mota, eu, Lucas Mendes e Caio Blinder. A gente vendeu essa coluna pra Portugal, pro Diário de Notícias, porque naquela época a Globo tinha um canal lá e o Manhattan Connection fazia muito sucesso em Portugal.

Lúcia Guimarães, Ricardo Amorim, Lucas Mendes e Caio Blinder na bancada do Manhattan Connection | Imagem: Isto É Gente/Reprodução

Quando acabou a coluna, eu continuei um período com o Caio Blinder no Globo e no Estadão, depois acabou isso também e o Estadão me levou, em 2008, como colunista e correspondente. Eu fui pra Veja, um período curto em 2019, a Veja foi comprada, a situação financeira mudou lá e eu fui pra Folha, em dezembro de 2019.

Lúcia, o que é jornalismo?

Jornalismo é apurar fatos e informar sobre esses fatos com integridade e independência. Infelizmente a gente está vivendo um período muito complicado. O jornalismo é fundamental para a democracia — se você olhar, qualquer sociedade, quanto mais democrática a sociedade, mas independência de jornalismo ela abriga.

E a era digital, especialmente as redes sociais e os algoritmos, destruiu a economia da indústria de jornalismo. Essa erosão democrática que a gente está vendo, essa emergência de fascistas, autoritários, que ganham a eleição — mesmo suja, mas se dizem eleitos — e aí destroem. Então essa definição do jornalismo fica mais clara quando a gente vê que a falta de ambiente pra informar está sendo uma grande aliada desse surto autoritário no mundo todo.

A imprensa errou, ou erra, na cobertura desses governos?

A imprensa ajudou. Nos Estado Unidos, a imprensa fez campanha pro [Donald] Trump, fingindo que não estava. Fez campanha pra ele como um palhaço que a imprensa tinha certeza que não ganharia a eleição, mas dava muito lucro.

Inclusive, o ex-CEO da CBS, cinicamente, numa conferência com afiliadas, o Les Moonves, que saiu por causa da assédio sexual, disse ‘o Trump é ruim para o país, mas era ótimo pra nós’.

O presidente da CNN, que não é de direita como a Fox, era o diretor de programação da NBC, que inventou o Trump, o Jeff Zucker. Ele inventou o Trump como celebridade de reality show. Ele tinha uma relação com o Trump da época da NBC. Durante a campanha de 2016, ele já era presidente da CNN, e eles botavam o Trump no ar o tempo todo. Ele ligava da rua e eles botavam no ar.

Trump concede entrevista, por telefone, à CNN em 9 de maio de 2016, antes das prévias na Virgínia | Imagem: CNN/Reprodução YouTube

É um conteúdo muito barato e aquilo dava audiência. Você colocar uma foto dele e ele ficar arrotando durante quinze minutos seguidos. É o conteúdo mais barato que existe. Como a campanha dele não tinha dinheiro, eles não conseguiam comprar tempo de TV, a campanha foi pro Facebook.

E a Hillary Clinton fez aquela campanha tradicional, gastando milhões e milhões de dólares em anúncio de TV. Já o Trump telefonava para os canais a cabo — MSNBC, CNN e FOX — e ficava horas no ar falando. Então a imprensa americana ajudou a eleger o Trump da seguinte maneira: dando um espaço absurdo pra ele mentir.

O Trump é um gangster, é um cara que tem relação com a máfia russa, ele lavou dinheiro nos cassinos dele, ele foi um fracasso retumbante como empresário. Ele é o único cara que conseguiu falir, se não me engano, três ou quatro cassinos.

Isso tudo estava documentado por um jornalista, que inclusive morreu logo depois da eleição, Wayne Barrett. Um jornalista investigativo maravilhoso, que tinha trabalhado muitos anos para o The Village Voice, e que tinha documentado toda a sujeira do Trump.

Aqui tem essa relatividade: o Clinton é um monstro porque teve escândalo sexual. O Trump simplesmente tinha um traficante de cocaína trabalhando pro cassino dele e que operava helicópteros. Eu acho inacreditável, não é que a imprensa ficou em silêncio total sobre ele, mas eu acho que ficou nesse torpor do espetáculo Trump, que era um coisa escatológica, em vez de pegar pesado nas manchetes: ‘Trump e o traficante’, ‘Trump e o mafioso russo’.

Pra você ter uma ideia, nos anos 80, quando ele inaugurou aquela torre, a Trump Tower, só tinha dois prédios em Nova York que aceitavam vender apartamentos em dinheiro vivo. Um era na quinta avenida também, onde vivia aquele traficante de armas Adnan Khashoggi e a outra era a Trump Tower. Em 1986, um mafioso russo comprou cinco apartamentos em dinheiro vivo dentro da Trump Tower. O Trump é uma mina de ouro de sujeira pra ser investigado. E eu acho isso um grande fracasso da imprensa americana.

O trauma da derrota inesperada da Hilary, fez com que a imprensa ficasse tão defensiva ‘nós erramos’; ‘nós não conhecemos o homem comum’; ‘nós somos elitistas’. Um mea culpa ridículo. Aí tinha não sei quantas matérias no New York Times que eles iam para um diner [pequeno restaurante de redes de fast-food], num lugar bem reacionário, entrevistar desencantados brancos da classe trabalhadora pra mostrar o que eles sentiam.

“Eu acho que a vitória do Trump inclui uma derrota no trabalho da imprensa.”

Com Bolsonaro também ou há alguma diferença?

Com Bolsonaro é de maneira diferente. A imprensa estava naquele transe da Lava Jato, que vazava pra repórteres selecionado e ficou nesse transe anti-petista, que o Sérgio Moro explorou muito bem.

Se você olhar, a cobertura do Paulo Guedes foi um vexame. Até o dia que o Pérsio Arida deu uma entrevista dizendo que o Guedes era um bundão, metido, complexado, recalcado, porque não fez parte do plano real. Quando reuniu aquela elite pra fazer o Plano Real, Paulo Guedes foi completamente desprezado.

O Paulo Guedes dá o telefone dele pra todo mundo. Ele cultiva jornalistas. Aí a imprensa fez uma aliança de credulidade com ele e congelou a imagem de estatista, corrupto, rachadinha, medíocre [de Bolsonaro]. Um cara que planejou botar bomba no exército — e não ficou preso por um absurdo —, porque ele queria subir o soldo dos militares. O Paulo Guedes ia provar que o PT era só criminalidade. E não é verdade.

Ministro Paulo Guedes em quebra-queixo com jornalistas | Foto: Valter Campanato/Agência Brasil

Então a imprensa tem culpa nisso, porque em vez de noticiar o tempo todo que tinha um cara renegado, marginal, que ia se eleger presidente da então sétima maior economia do mundo, ficaram nesse negócio de Paulo Guedes, essa coisa de Chicago.

Eu vi entrevistas nojentas promovendo Paulo Guedes, antes da eleição. E ele se revelou pior ainda. Se revelou um cara pusilânime que quer poder de qualquer maneira e é um cara rico o suficiente pra continuar. É um picareta total e no início eu acho que a imprensa fracassou, sim.

Você não acha que a imprensa fica esperando um movimento drástico do presidente — que vai fechar o supremo, o congresso — e enquanto não vem tolera esses e outros absurdos?

Eu sinceramente não tenho resposta pra isso. Ele é um cara que rouba o oxigênio. Faz barulho o tempo todo e imita muito o Trump nisso. Por exemplo, quando alguém está chegando perto dos filhos dele, ele inventa alguma coisa tão escatológica, tão maluca que faz com que todo mundo fique no Twitter e no Facebook, com aquela indignação que eu chamo de indignação recreativa. No fim do dia você acha que protestou pra caramba, mas você só levantou pra ir no banheiro.

Nisso o Bolsonaro é muito esperto. Ele é ignorante, tosco, mas ele sabe que é fácil distrair a atenção dos jornalistas. Embora eu acho que tem muita reportagem, tem muito furo, tem muito jornalismo investigativo bom acontecendo, inclusive de veículos que vão com tudo contra o Lula. Mesmo nesses veículos tem muito jornalismo pro qual eu tiro meu chapéu.

Tem como ignorar algumas falas do Bolsonaro?

Jornalismo não é estenografia, não é repetir o que a pessoa fala. Uma coisa é o Fernando Henrique Cardoso dizer: ‘eu vou fazer isso’. Fernando Henrique Cardoso não é um louco varrido, um gangster, ele tem credibilidade. Agora, quando você tem um cara podre como Bolsonaro no poder… jornalismo é edição, é escolha. Não dá pra ficar simplesmente repetindo o que o Bolsonaro fala e você tem que escolher a manchete.

“A manchete tem que ser a verdade, não a estenografia do mentiroso.”

Já começaram a fazer isso, mas no começo não faziam.

Por que você acha que Estadão e Globo não deram manchete para as manifestações de sábado (29 de maio)? Nas redes sociais é comum uma insinuação de que seriam bolsonaristas.

De jeito nenhum. Não são bolsonaristas porque os proprietários não são. Os proprietários detestam o Bolsonaro. No caso do Globo, várias pessoas comentaram que não entenderam a decisão de domingo. Não tem explicação. Mas eu não vou ficar aqui adivinhando.

Essas redações todas têm jornalistas maravilhosos que estão se expondo, sendo ameaçados de morte por bolsonaristas. A maioria das pessoas está tentando dizer a verdade. Mas tem essa questão do papel do editor e eu acho que existe essa coisa do anti-lulismo. É uma coisa tão extrema que vira meio reflexiva.

Esse movimento antidemocrático, de desprezo por qualquer instituição. Da imprensa, da verdade… Você acha que isso pode deixar de existir ou só vai recuar a uma parcela permanente do eleitorado?

Não são conservadores, são niilistas. Eles precisam de caos. Eu acho que o gênio escapou da garrafa. O que estava em jogo no dia 6 de janeiro era um golpe de estado, o Trump queria isso. O que salvou a democracia americana foi a máquina burocrática dos governos federal e estadual. Foram funcionários públicos que salvaram os Estados Unidos.

Invasão do Capitólio por apoiadores de Donal Trump, 6 de janeiro do 2021 | Imagens: REUTERS/Shannon Stapleton e Win McNamee/Getty Images

Mas aí você vê: é uma democracia de mais de 240 anos que tem a força militar mais formidável do pós-Guerra e tem uma tradição aqui que nenhum milico americano participou de um governo militar. Os generais brasileiros eram militares na época da ditadura. O Brasil é muito mais frágil.

A maneira como eles entraram no governo Bolsonaro já é abjeta e depois o Bolsonaro comprou os militares com grana. Eles estão sangrando o tesouro brasileiro. Eles são os novos marajás. O cara pode até dizer que é ideológico, que está tentando salvar o Brasil do Lula, mas não é isso, não. É grana. Mordomia.

A imprensa está preparada para a eleição do próximo ano? Ela será mais violenta que a de 2018?

Muito mais, a gente está entrando no período mais violento desde os anos 70. Eu estou apavorada. Mas eu não sei se a imprensa está preparada.

“No Brasil a gente não tem militares pra dizerem não pro Bolsonaro, então eu acho que a gente tem um regime semi-militar.”

As instituições não estão funcionando. Já eram frágeis e não estão funcionando. O Brasil tem um governo militar híbrido, hoje em dia. Sem tanque na rua. Existem bolsões de independência civil, mas o Brasil está nas mãos dos militares. No Brasil a gente não tem militares pra dizerem não pro Bolsonaro, então eu acho que a gente tem um regime semi-militar.

As redes sociais ajudam o jornalismo?

Não, a rede social péssima. Ela destrói a democracia e não porque é a rede social, é porque os oligarcas que controlam esse ecossistema usam algoritmos que são antidemocráticos. Ele só dá lucro se você provocar divisão, se você mentir, se você incensar racismo, preconceitos. O algoritmo existe pra semear divisão e não conhecimento.

Hoje [04 de junho] o [Mark] Zuckerberg anunciou que o Trump está banido até janeiro de 2023. Mas o estrago que Zuckerberg fez no mundo… Pra mim ele é um inimigo público global. Ele é um cara que ajudou genocídio em Myanmar. Eu sou muito pessimista em relação a isso.

O Biden levou dois professores da Universidade de Columbia pra Washington que são antitruste, preocupados com essa questão da democracia e com o acúmulo de poder. A expectativa que eu tinha é que ele quebrasse o Facebook.

“O Facebook não pode ser dono do Instagram nem do WhatsApp. De jeito nenhum.”

Ele vai ter apoio pra isso?

Agora a ultra-direita está furiosa com o Zuckerberg porque baniu o Trump. Quando o Zuckerberg começou a faxina de desinformação, tímida, que ele promoveu, ele irritou muito mais a ultra-direita lunática do que a esquerda. Então eu não ficaria surpresa se houvesse apoio pra repartir. E isso é uma coisa de longo prazo. Essas coisas das fórmulas industriais, os algoritmos, precisam ser enfrentadas. Porque ela são feitas pra destruir e promover autoritarismo.

Como você vê o aumento de diversidade nas redações, principalmente nas de jornalismo cultural, e a popularização do ofício por meio das redes?

Há vantagens e desvantagens nos dois modelos de jornalismo. A desvantagem do período anterior é que você tinha controladores de opinião. Até os anos 90, o The New York Times fechava uma peça na Broadway. Fechava em dois dias, com uma crítica do Frank Rich. E isso é um efeito, pra mim, deletério. É um poder enorme. O jornal tascava um crítica de uma estreia na Broadway e fazia, ou destruía, uma estreia. Hoje em dia ninguém vai atrás do crítico do The New York Times.

Mas agora tem uma vantagem porque tem uma multiplicidade de vozes na cultura. Até porque nós sabemos que esse status quo anterior era status quo de homens brancos. Não tinha mulheres, não minorias étnicas. É legal haver diversidade na cobertura cultural.

O problema é que a economia do jornalismo foi destruída. De que adianta todo mundo estar escrevendo tudo o tempo todo se ninguém paga? Se a publicidade deixou de ser o sustento do jornalismo. Porque o Facebook e o Google controlam 90% do mercado publicitário. Se isso não é monopólio, eu não sei o que que é.

Pro Saia Justa, em 2012, você fez uma reportagem sobre a moralidade do artista e como a gente se relaciona com suas obras. Como você viu o movimento em torno da biografia do Philip Roth?

Eu tenho certeza que o Philip Roth foi monstruoso com a mulher dele, a mulher de quem ele se divorciou e depois escreveu o I Married a Communist [Eu casei com uma comunista, traduzido pela Companhia das Letras]. Esse biógrafo que tem biografias maravilhosas, infelizmente, eu conheço ele. Conversei com ele, ele me deu exclusivas. Ele é amigo de um amigo meu. E a história é dantesca, ele estuprou uma mulher de 41 anos e uma ex-aluna.

No caso da biografia do Philip Roth, eu sou contra tirar o livro de circulação. Sou contra. Porém, eu acho que o livro foi tirado por pura hipocrisia. A mulher que dirige a editora recebeu a denúncia, se não em engano, dois anos antes da publicação do livro. Em vez de investigar — que era obrigação dela — ela mandou o email da mulher, que pedia anonimato, pro estuprador, pro autor. E enterrou o assunto. A mulher ficou em pânico e ficou por isso mesmo.

Lúcia Guimarães em reportagem para o programa Saia Justa | Imagem: Globo/Reprodução

Agora, o Philip Roth é um grande autor e um grande filho da puta. Eu não vou deixar de ler os livros de Philip Roth, como não vou deixar de ver os filmes do Woody Allen, que eu adorei. É arte, pô!

Mas tem limites. Uma coisa é o Bruce Willis, que é muito querido mas é Republicano. Ele é mau ator porque é Republicano? Não. Mas existe o apoio à barbárie. A Regina Duarte é uma mulher que apoia a tortura. Quando ela apoia o Bolsonaro ela está apoiando a tortura, estupro, barbárie, extermínio dos Yanomamis, então eu não tenho o menor respeito pela Regina Duarte. Ela tem direito de falar, mas eu quero que ela vá pro inferno.

Como é sua rotina?

Minha rotina foi pro inferno com a pandemia. Eu tenho a rotina horrorosa da pandemia, que durante 2020 foi ter medo quando pisca o WhatsApp de que alguém mais morreu. Morrer de medo de entrar nos lugares. Ficar completamente isolada.

Nova York foi o epicentro de morte. Entre abril e maio, Nova York era onde mais morria gente. Tinha caminhão com pilha de mortos, com sacos de corpos. Não tinha lugar pra enterrar. Foi um período traumático. Eu tive que passar por tudo isso, perder gente querida, cobrir a pandemia, o Trump e a eleição. Então foi um estresse terrível que eu compensei um pouco assistindo filmes clássicos, muita comédia, ouvindo podcasts sobre outros assuntos, sobre arte pra me distrair. Precisava de escapismo mesmo.

Você tem alguma dica pra quem está começando?

A primeira dica é: não seja jornalista (risos).

Eu estou falando de maneira egoísta. Tem várias maneiras de você satisfazer sua vontade de escrever e de falar do mundo sem depender de ganhar uma miséria numa redação. Na idade que você está, isso é adrenalina pra você. Mas eu passei por todas as fases: cobri revolta na penitenciária, cobri guerra, cobri a ONU, cobri presidente.

Agora, se a pessoa insiste em ser jornalista, precisa ter os olhos muito abertos para as mudanças do mundo. Tem que compreender melhor jornalismo de dados. Eu não precisei editar vídeo até o começo dos anos 2000, porque a economia do que eu fazia tinha papéis definidos.

E o jornalista, hoje, precisa ser alerta sobre a presença dele na rede social. Antigamente ninguém precisava de presença na rede social. Um dos melhores repórteres políticos do Brasil simplesmente não existe no Facebook e no Twitter. E eu tenho certeza que ele é muito menos lido por causa disso. E isso é muito duro quando você é jovem. Porque eu sei quem eu sou, mas quando você tem 22, 23, 24 anos e levar pancada todo dia é muito duro. Você está descobrindo quem você é. Tem essa questão emocional. Bloqueia suas contas, não presta atenção.

“Você não pode ser definido por esse ódio constante online.”

Quando eu comecei, eu achava que jornalismo ia me sustentar o resto da vida, não me sustenta mais; eu não consigo viver de jornalismo. E eu achava que era uma carreira, e hoje eu não vejo mais como uma carreira. Já devia não ter visto como uma carreira há 20 anos. Eu neguei o que estava acontecendo. Hoje em dia a saída é estar jornalista e não ser jornalista. Pra quem consegue ser, parabéns. Tenho inveja.

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