Violência doméstica

Da prevenção à proteção: os desafios do enfrentamento a violência doméstica no Rio Grande do Sul

Número de feminicídios no Estado aumentou em 2023, na contramão de outros indicadores

Guilherme Freling
6 min readFeb 12, 2024

Maria*, é mãe de seis filhos e uma sobrevivente. Enfrentou um dos desafios mais difíceis da vida: durante anos, foi vítima de violência física e psicológica praticadas por quem, naquele momento, era seu companheiro. Sofreu agressões verbais, tapas, socos, chutes. Maria tomou uma decisão crucial ao buscar uma medida protetiva contra seu ex-companheiro, no entanto, mesmo com a medida em vigor, ela enfrentou uma tentativa de homicídio, em 2017.

Após a decisão judicial de que o homem deveria se manter a 100 metros de distância de sua residência, ela voltou para o lar com seus filhos, de onde havia saído para se refugiar na Casa de Acolhimento Mulheres Mirabal. Mas a decisão não foi capaz de manter o ex longe, e logo após o retorno de Maria pra casa, ele invadiu e golpeou a mulher com facadas.

No mesmo ano em que Maria se somou aos dados de feminicídios tentados, outras 82 mulheres passaram pela mesma situação no Rio Grande do Sul. Com base nos dados disponibilizados pelo Observatório da Violência Contra a Mulher da Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul, a reportagem elaborou o infográfico interativo abaixo para contar um pouco da história da violência contra a mulher com base em dados.

Combate à violência

Para a Ivana Battaglin, promotora de Justiça Coordenadora do Centro de Apoio Operacional de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher do Ministério Público do RS, o aumento no número da violência observado nos últimos anos se deve, em parte, ao desfinanciamento de políticas públicas voltadas ao assunto por parte do governo Federal.

“Nós não conseguimos fazer política pública e enfrentar a violência contra a mulher sem dinheiro. Só com boa vontade não se faz”, afirma.

Promotora Ivana Battaglin critica o desfinanciamento à políticas de combate a violência doméstica | Foto: Mari Lapinski

A posição é reforçada pela análise do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, divulgado no ano passado. O 17º Anuário, referente ao ano de 2022, observou um crescimento da violência contra a mulher e levantou algumas hipóteses para explicar o crescimento no âmbito nacional.

Além do desfinanciamento de políticas públicas durante o governo do ex-presidente Jair Bolsonaro, o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, responsável pelo Anuário, menciona o impacto da pandemia nos serviços de acolhimento e proteção às mulheres; o crescimento de movimentos ultraconservadores, que defendem a manutenção dos papéis de gênero em que as mulheres são inferiores; e o backlash, ou a reação aos esforços para romper os papéis de gênero históricamente atribuídos.

A tendência de crescimento observada no âmbito nacional, em 2022, se manteve ao longo de 2023 no RS, como mostram os números da SSP/RS.

Foram 55.623 registros relacionados à violência contra a mulher em 2023. O número é 17,5% maior que em 2022. Nesse dado, estão inclusos os registros de ameaça, estupro, lesão corporal e feminicídios tentados e consumados.

O único indicador que observou redução no Estado foi o de feminicídios consumados, que caiu de 111 para 87, em 2023. Número 21,5% menor em relação a 2022.

Cultura machista

Em 2012, o Rio Grande do Sul tornou-se pioneiro no Brasil ao instituir o Programa Patrulha Maria da Penha, da Brigada Militar. O programa atua fazendo visitas à residência das vítimas de violência doméstica que tiveram medidas protetivas decretadas pela Justiça. Se a vítima aceitar participar do programa, a Brigada passa a fazer rondas periódicas, com visitação à sua área de residência. O objetivo principal é dissuadir os agressores a descumprir as decisões judiciais.

Para o Major Diego Terra, coordenador estadual da Patrulha Maria da Penha, as ações posteriores aos casos de violência ainda são insuficientes para acabar com esses crimes. Ele defende a necessidade do esclarecimento da sociedade a respeito da discriminação em razão de gênero. “Quando a gente começar a ter a sociedade começando a conhecer como funciona essa violência, vai poder contribuir justamente para não aceitar esse tipo de comportamento.”

Para ele, é importante que a população, principalmente as mulheres, possam reconhecer que estão inseridas em um ciclo de violência. A partir desse reconhecimento, a vítima vai poder buscar auxílio, fazer a denúncia e permitir que o poder público atue.

“A gente [poder público] tem que conquistar a confiança dessas outras pessoas que não estão ainda se sentindo seguras, ou não estão conseguindo sair do ciclo da violência, para fazer o registro, para que o Estado possa dar sua resposta”, afirma.

Sargento Ângela da Silva Dias e Major Diego Terra, responsável pela Patrulha da Maria da Penha no RS | Foto: Mari Lapinski

A promotora Ivana, avalia que a tolerância da sociedade com relação à violência contra a mulher está ligada à cultura de superioridade masculina. Ela lembra que desde o período colonial no Brasil, o casamento servia para tornar dar ao homem a propriedade sobre aquela mulher. Até a década de 60, por exemplo, a mulher precisava de autorização expressa do marido para poder trabalhar.

“Havia autorização nos códigos [legais] anteriores de que se a mulher traísse o marido, o homem estava autorizado a matá-la. Por isso a gente tem tanto feminicídio, porque a legislação mudou, mas a cultura não”, lembra ela.

Para a promotora, a principal ação para combater a violência contra a mulher é a educação. Ela observa que a maior parte da Lei Maria da Penha é de caráter preventivo. Ou seja, prevê o enfrentamento à violência contra a mulher com ações articuladas do poder público, antes da punição.

“Em matéria de violência doméstica, a punição não é o mais importante. Ela é relevante também. É uma luta histórica dos movimentos feministas, no sentido de que o agressor tem uma resposta, mas ela não é o mais importante”, afirma Ivana.

Coordendada por Macliciana Donida, a Casa de Referência Mulheres Mirabal atende mulheres em situação de violência que precisam de abrigamento ou acolhimento | Foto: Mari Lapinski

Suporte necessário

Macliciana Donida, coordenadora da Casa de Acolhimento e Abrigamento de Mulheres em situação de violência Mulheres Mirabal, afirma que, desde o primeiro acolhimento, a Casa busca entender o perfil da vítima para poder auxiliá-la. “Boa parte das mulheres não precisa de abrigamento, porque ela tem algum lugar para ficar onde ela vai estar segura”. Porém, quando precisa, ela é encaminhada para um local sigiloso em que vai poder morar pelo tempo que for necessário para reconstruir sua vida.

Macliciana observa um perfil que o perfil de mulheres mais comum na Mirabal é de jovens entre 18 e 30 anos, negras e com mais de um filho. “Esse é o padrão”, afirma. Contudo, ela lembra que a violência contra a mulher não é exclusiva de um grupo social. “Não tem nada que vá garantir que a gente não vai sofrer violência. Isso não existe.”

Depois de sofrer a tentativa de feminicídio, Maria encontrou oportunidades de crescimento pessoal e aprendizado na Casa Mirabal. Segundo ela, sua passagem pela Casa ensinou-a a se impor e a valorizar sua própria dignidade. Aprender a dizer “não” e reconhecer os sinais de violência. Esse é um conhecimento crucial para romper o ciclo de violência e construir uma vida baseada no respeito próprio e na autoestima.

Ao refletir sobre sua história, Maria deixa um poderoso apelo para todas as mulheres que enfrentam situações de violência doméstica: buscar ajuda. Ela enfatiza a importância de não se calar e de buscar apoio em amigos, familiares ou instituições de acolhimento. Maria acredita firmemente que nenhuma mulher deve aceitar ser maltratada e que é fundamental quebrar o ciclo de violência. Sua história é um lembrete poderoso da importância da solidariedade e da ação coletiva na luta contra a violência doméstica.

*Nome fictício.

Reportagem produzida por Guilherme Freling, Gustavo Pinheiro, Marieli Lapinski e Paulo Alberto Garcia para a cadeira de ciberjornalismo 3 da Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da UFRGS.

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