Teoria do Jornalismo

A responsabilidade de incomodar

Uma reflexão teórica sobre o jornalismo a partir da censura à revista piauí

Guilherme Freling
6 min readAug 2, 2023

--

Quando chegou às bancas, no começo de junho deste ano, a edição 201 da revista piauí incomodou o casal Lucas Wollmann e Diani de Oliveira Machado. Eles foram citados na reportagem “O cupinzeiro”, do repórter Breno Pires, que, em cinco páginas, conta como a gestão bolsonarista transformou o Ministério da Saúde em um ninho de casos de nepotismo, assédio moral, irregularidades administrativas e mau uso de verba pública.

O incômodo parece ter sido tão grande que o casal resolveu acionar a Justiça pedindo a supressão de seus nomes do texto e a censura da revista. Conseguiram. E em duas instâncias da Justiça. Por enquanto, a revista impressa de junho está proibida de circular e o texto da versão digital manteve apenas as iniciais: L.W. e D.O.M.

A reportagem trouxe à tona uma denúncia anônima, de 95 páginas, que levanta suspeitas sobre uma seleção para a Agência para o Desenvolvimento de Atenção Primária à Saúde (ADAPS). O documento chama atenção para o baixo número de participantes, a coincidência da aprovação de casais em bons cargos. Além das amizades entre os selecionados e dirigentes da Agência. Entregue ao Tribunal de Contas da União, ainda na gestão Bolsonaro, a denúncia está sendo analisada por uma comissão formada por representantes do Ministério da Saúde, da Advocacia-Geral da União e da Controladoria-Geral da União.

Para além do debate sobre liberdade de imprensa, ou direito de defesa da honra, a situação concreta — quase anedótica — propicia uma discussão a respeito de três pilares essenciais do jornalismo: a verdade, o interesse público e a responsabilidade social da profissão.

Como defendem os autores Bill Kovach e Tom Rosenstiel no clássico “Elements of journalism”, a comunicação possui aspectos comuns em diversas culturas. Os autores lembram que, para sociedades primitivas, as qualidades esperadas em “mensageiros” são, basicamente, as mesmas que se espera do jornalista hoje em dia: “pessoas ágeis, que pudessem reunir informação acurada e recontá-las de forma envolvente”*.

O que se extrai disso, é que o jornalismo satisfaz uma “necessidade primitiva do ser humano” de conhecer o que está além de sua experiência de vida. (Kovach; Rosenstiel, 2021)

A profissão jornalística, contudo, não é a-histórica ou independente da sociedade em que foi forjada. Kovach e Rosenstiel, no capítulo “Para que serve o jornalismo”, atribuem ao jornalismo o papel de “subsidiar os cidadãos com a informação que eles precisam para serem livres e se auto-governarem”. Nesta definição, está implícita a noção de uma sociedade crente na existência de “cidadãos livres” e capazes de se “autogovernarem” a partir de seu esclarecimento.

A sociedade na qual escrevem foi formada com base no pensamento liberal iluminista, berço da democracia moderna e também do jornalismo contemporâneo. O conjunto de valores no qual está incrito pressupõe livre iniciativa, representação política e direitos individuais. É nesse contexto que os autores refletem sobre a profissão jornalismo e compreendem as suas “finalidades”.

Pensar os papéis que essa sociedade atribuiu à profissão foi a que se dedicou a autora Gisele Reginato. Ela investigou a partir do discurso de diferentes perspectivas: academia, leitores, jornalistas e veículos. A conclusão está condensada em 12 “finalidades do jornalismo”, que resumem a função social da profissão.

A primeira e basilar, “necessária para o cumprimento das outras finalidades”, é “informar de modo qualificado” (Reginato, 2019). Desde a primeira formulação de uma teoria do jornalismo, em 1690, por Peucer, informar está no centro do papel social do jornalismo.

Reginato, contudo, deixa claro que nem toda informação é jornalismo. “Para ser qualificada, a informação deve ser verificada, relevante, contextualizada, plural e envolvente”.

A informação verificada é a garantia de que o trabalho jornalístico é crível. Redação correta de nomes, precisão de dados, e afirmações que correspondam à realidade são o que diferenciam o jornalismo da ficção ou do mero testemunho. Ademais, a relevância é parte da qualificação da informação, afinal, em um espaço limitado, o que merece atenção Utilização de fotografias, infográficos e outros recursos em uma narrativa envolvente e plural contribui para que a finalidade de informar seja bem cumprida.

Em suma, o papel e a responsabilidade social do jornalismo é fornecer informações qualificadas — de acordo com certos critérios — aos cidadãos. Se isso não fosse pouco, trata-se de uma profissão inserida em uma sociedade de mercado e de uma democracia representativa. Diante disso, finalidades observadas por Reginato, como fiscalização do poder, fortalecimento da democracia ou esclarecimento dos cidadãos, ganham destaque.

A reportagem da piauí, portanto, setorna um exemplo de bom trabalho.

A revelação das falcatruas que reinaram no Ministério não é só um direito dos cidadãos, mas um dever da profissão. O Ministério da Saúde tem o maior orçamento da Esplanada e as irregularidades denunciadas aconteceram durante a maior pandemia em um século. A revelação bem descrita dos detalhes, a contextualização dos personagens da trama, o dimensionamento dos fatos narrados são o dever de quem pretende informar e de modo qualificado.

O pedido de censura à revista piauí feito pelo casal Lucas Wollmann e Diani de Oliveira Machado inclui uma expressão que atinge o cerne de qualquer trabalho jornalístico e que o diferencia de outros tipos de discurso. Segundo eles, a revista noticia “fato inverídico”. O juiz Hilmar Castelo Branco Raposo Filho, da 21ª Vara Cível do Distrito Federal, concordou. Foi dele a primeira decisão contrária à revista e que viria a ser mantida pelo desembargador Robson Teixeira de Freitas, do Tribunal de Justiça do DF.

Acontece que o “contrato de comunicação” do jornalismo, como defendem Silvia Lisboa e Marcia Benetti no artigo “O jornalismo como crença verdadeira justificada”, pressupõe que o relato jornalístico corresponde à verdade. “O sujeito [leitor] deve crer que o jornalismo diz a verdade, e esta verdade deve estar justificada em seu próprio discurso.” (Benetti; Lisboa, 2015)

Embora na filosofia o conceito de verdade seja múltiplo, para o jornalismo apenas a verdade como correspondência do real interessa. Isso significa que somente aquilo que puder ser cmprovado na realidade objetiva e exterior ao relato conta como “verdade”.

Nesse sentido, o trabalho do jornalismo, para que seja crível, exige investigação e a apresentação de elementos “comprobatórios” do que diz. Relatos de testemunhas, avaliações de especialistas, fotografias, documentos, etc. Estratégias de discurso que ajudam a construir a crença de que as informações são verdadeiras.

Na reportagem, a piauí reitera tais estratégias ao afirmar que a apuração envolveu “consultas a registros públicos e entrevistas com funcionários que passaram pelo crivo da seleção”. O texto é rico em detalhes, como horários, descrições, etc. Técnica clássica para reforçar a ideia de uma reportagem bem apurada, e, portanto, crível.

Porém, diante da decisão da justiça, cria-se um impasse aparente. Pedir a censura de um texto jornalístico porque ele seria “inverídico” corresponde a dizer que ele não é jornalismo. É indigno de ser conhecido.

Do ponto de vista jornalístico, o impasse se restringe ao campo das aparências. O motivo é simples. A verdade no jornalismo, retomando Benetti e Lisboa, está na dimensão do relato e da correspondência à realidade. Espera-se de um relato jornalístico que ele diga a verdade, apurada a partir dos métodos que dispõe: checagem, entrevistas com testemunhas, documentos públicos ou vazados, fotografias, especialistas etc.

A notícia da revista que um relatório anônimo foi entregue aos ministérios e está sendo analisado por um grupo que envolve o Ministério da Saúde, AGU e CGU é verdadeira, está embasada em documentos. Ao longo do texto são apresentadas evidências de que o que está sendo dito é verdadeiro, como documentos e dados públicos, fatos conhecidos e descrições passíveis de contestação.

O jornalismo informa fatos. E, às vezes, incomoda mesmo. Essa é sua função.

*Tradução minha

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BENETTI, Marcia; LISBOA, Silvia. O jornalismo como crença verdadeira justificada. Brazilian Journalism Research, Brasília, v. 2, n. 2, p. 10–29, 2015.

KOVACH, Bill; ROSENSTIEL, Tom. Os elementos do jornalismo: o que os profissionais devem saber e o público deve exigir. Porto: Editora Porto, 2001. [Capítulo 2, “Verdade: o primeiro e mais confuso dos princípios”, p. 35 a 49]

KOVACH, Bill; ROSENSTIEL, Tom. The elements of journalism: what newspeople should know and the public should expect. Revised and updated fourth edition. New York. Crown New York. 2021.

REGINATO, Gisele Dotto. As finalidades do jornalismo. Florianópolis: Insular, 2019.

--

--